Sete anos depois de decifrado o genoma humano, começam a surgir as primeiras aplicações práticas. Testes que examinam o DNA dos indivíduos para indicar os riscos de desenvolver doenças já estão sendo comercializados e são o prenúncio de uma mudança no que se entende por medicina, autoconhecimento - e, também, privacidade.
Em 2001, os cientistas conseguiram decifrar por completo o quadro de informações do código genético humano, o genoma -- e o anúncio, feito pelo americano Craig Venter, da Celera, foi um marco na história da medicina. Desde então essa massa de informações que compõem a receita básica do homem é estudada nos laboratórios, em busca do Santo Graal da genômica: estabelecer relações entre o conjunto de genes de uma pessoa e a predisposição que ela tem para determinada doença. Já existiam testes para identificar genes ligados a problemas específicos, como o câncer de mama. Mas 2007 viu o nascimento de quatro empresas que oferecem um serviço diferente: um mapeamento amplo do DNA para o consumidor comum. Por 1 000 dólares e com uma amostra de saliva enviada pelo correio, a empresa americana 23andMe faz a análise de uma parte do genoma do cliente em cerca de um mês. Os resultados podem ser consultados no site da empresa e indicam, em termos percentuais, se o cliente tem predisposição para desenvolver doenças, como diabetes e doença de Crohn, por exemplo. Essa nova geração de testes de DNA, com um mercado estimado em 12,5 bilhões de dólares em 2009, tem o potencial de transformar o que se entende por medicina -- e levanta importantes questões a respeito da privacidade.
Os benefícios potenciais de um mapa genômico são enormes. Quem sabe que corre riscos de ter um problema cardíaco não terá mais desculpas para evitar as atividades físicas regulares. Quem descobrir ter propensão a câncer de cólon, por exemplo, pode fazer colonoscopias preventivas. "A idéia é que, no lugar de um mapa astral, as pessoas terão o mapa genético, com todas as predisposições ao que podem desenvolver listadas, e vão poder adaptar o estilo de vida ao seu genoma", diz o médico geneticista Sérgio Danilo Pena, de Belo Horizonte. Num futuro um pouco mais distante, a descrição genética de cada indivíduo será parte integrante das consultas médicas: os diagnósticos vão levar em conta a história narrada pelo paciente e também aquela escrita pela decodificação de seu DNA. E o sonho dourado da nascente indústria da genômica de consumo é a correção: terapias gênicas e remédios feitos sob medida para uma única pessoa poderiam, em tese, corrigir os desvios identificados como problemáticos nos mapas genéticos.
Mas esse dia ainda está distante, e não só por causa do desafio científico. O genoma humano já foi lido, mas ainda não é inteiramente compreendido. Numa comparação simples, o que há hoje é uma lista de todas as letras que formam o código genético, mas é necessário identificar o que a combinação delas, ou os genes, significa. Ou seja, ainda há um universo enorme do DNA humano a ser traduzido. Sem um acompanhamento médico, o mapa genético pode ser confundido com um diagnóstico -- quando, na realidade, ele apenas aponta a probabilidade de desenvolvimento de determinadas doenças. Além disso, muitas delas dependem mais de fatores ambientais do que da predisposição genética. Outra questão importante é cultural. Trata-se de um mercado muito novo. É difícil saber quantas pessoas gostariam de fazer um exame que pode apresentar a elas uma probabilidade grande de desenvolver o mal de Alzheimer, para o qual ainda não existe cura. Mas também há um grupo de pessoas que certamente terá interesse em descobrir seu futuro genético: quem já tem um histórico familiar de doenças graves, por exemplo. É com esse misto de angústia e curiosidade que as novas empresas de genômica de consumo vão jogar. "Todo ser humano é um consumidor potencial do serviço de genoma personalizado. As limitações seriam o preço ou o nível de conforto da pessoa para fazê-lo", disse a EXAME Linda Avey, uma das fundadoras da 23andMe.
Mas a questão mais importante diz respeito à privacidade. Com a sofisticação dos exames e a possibilidade de resultados mais precisos, a segurança do mapa genético do indivíduo será cada vez mais importante. Cenários que pertenciam apenas à ficção científica já parecem plausíveis. Imagine empresas que exijam o mapa genético de seus funcionários no ato da contratação, ou então planos de saúde que criem preços diferenciados para aqueles que apresentem mais probabilidade de sofrer de câncer. Imagine, ainda, um roubo de informações do banco de dados de uma empresa que faça esses testes. São três situações novas e complexas, que exigirão mudanças culturais e de legislação. Uma forte regulamentação desse setor é tida como certa, e nos Estados Unidos já está em andamento um projeto de lei para garantir o sigilo das informações genéticas de cada indivíduo. Apesar de todas as questões que cercam a genômica, não há dúvidas: o conhecimento do genoma vai mudar para sempre a vida dos seres humanos -- basta usá-lo com responsabilidade.
27/12/2007
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